Arion Louzada
A declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet pelo Supremo Tribunal Federal (STF) representa uma inflexão paradigmática na estrutura normativa da governança digital no Brasil. Os impactos jurídicos e institucionais da novel jurisprudência ofendem os princípios constitucionais da legalidade, da separação dos poderes e da segurança jurídica. Ao impor forma vária de responsabilização às plataformas digitais, sem respaldo legislativo, o STF extrapola suas competências constitucionais, inaugurando um regime de censura privada gravado pela indeterminação normativa.
A liberdade de expressão
constitui valor nuclear do Estado Democrático de Direito e condição para o
exercício pleno da cidadania. A promulgação da Lei n.º 12.965/2014 — o Marco
Civil da Internet — representou importante avanço na definição de direitos e
deveres no ambiente digital brasileiro, consagrando princípios como
neutralidade da rede, proteção de dados e responsabilidade condicionada de
intermediários. Entre seus dispositivos, o artigo 19 estabelece que provedores
de aplicações só podem ser responsabilizados por conteúdos de terceiros após
ordem judicial específica não cumprida. A recente decisão do STF de invalidar
esse dispositivo rompe com aquele arranjo normativo, inaugurando um novo
paradigma de responsabilização. A mudança escancara um ativismo judicial pedestre,
que fragiliza a separação dos poderes e instala a imprevisibilidade jurídica no
complexo sistema digital.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet fixa uma cláusula de salvaguarda à liberdade de expressão ao condicionar a responsabilidade civil dos provedores à existência de ordem judicial descumprida. Tal dispositivo alinha-se ao princípio da legalidade, art. 5º, II, CF/88, à proteção da livre manifestação do pensamento, art. 5º, IV e IX, e às garantias processuais do contraditório e da ampla defesa, art. 5º, LIV e LV. Ao arredar o dever de monitoramento prévio, o legislador evitou que plataformas se tornassem, de forma indireta, agentes censores ou juízes de conteúdo. A exigência de ordem judicial funciona como barreira institucional ao arbítrio privado e como mecanismo de preservação do controle jurisdicional sobre limitações a direitos fundamentais.
A revogação agora do artigo 19 se faz
acompanhar de um novo modelo de responsabilização, ditado por lógica esotérica:
às plataformas transfere-se o dever de identificar, avaliar e remover conteúdos
potencialmente ilícitos, independentemente de provocação do Poder Judiciário. Esse
modelo suscita preocupações múltiplas: insegurança jurídica decorrente da
ausência de critérios objetivos; efeitos silenciadores, chilling effects,
com tendência à remoção excessiva de conteúdos por receio de sanções; ampliação
de conceitos jurídicos indeterminados que favorecem interpretações arbitrárias;
supressão do devido processo legal, diante da responsabilização imediata e não
contraditada.
Ao deslocar
o eixo de controle do Estado para entes privados, pretextando-se proteção coletiva,
se consolida uma forma de censura delegada, sem base legal clara e sem
salvaguardas institucionais suficientes. Frequentemente invocada como modelo, a
Lei de Serviços Digitais da União Europeia, Digital Services Act — DAS,
tem sido utilizada, de forma imprecisa, como referência legitimadora da
jurisprudência brasileira. No entanto, a comparação revela disparidades
fundamentais. A DSA foi construída por meio de processo com participação
democrática, amplo debate e controle parlamentar. O regime europeu inclui
garantias procedimentais rigorosas, como: obrigação de notificação e
justificação na remoção de conteúdos; mecanismos recursais acessíveis; obrigações
de transparência sobre moderação de conteúdo; supervisão por autoridades
reguladoras independentes. Diferentemente da imposição judicial brasileira, a DSA
não deriva de juízo constitucional abstrato, mas de consenso político entre
instâncias representativas, respeitando os parâmetros da legalidade e da
proporcionalidade. Trata-se de um regime normativo coerente e não de uma
construção jurisprudencial ad hoc.
A atuação
do STF, ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 19 sem propor
substitutivos legais, exemplifica o fenômeno do ativismo judicial. A Corte, ao
pretender normatizar a atuação de plataformas por meio de decisões colegiadas,
assume um papel normativo que pertence ao Legislativo. Esse deslocamento
funcional fragiliza a lógica republicana, subverte a divisão clássica dos
poderes e compromete a legitimidade democrática das decisões políticas. A
criação de estruturas de fiscalização por via jurisdicional — como a sugestão
de envolver entidades privadas, o CNJ ou o MP — carece de previsão legal e
resulta na institucionalização de um modelo regulatório teratológico. O
protagonismo de alguns ministros, que se arrogam funções de verídicos ou de emissores
morais da democracia, reforça o risco de judicialização excessiva das disputas
políticas, configurando um desvio de finalidade do controle de
constitucionalidade, originalmente concebido como limite ao poder e não como
instrumento de direção política.
A invalidação do artigo 19 do Marco Civil da Internet pelo STF representa mais do que uma mudança interpretativa: trata-se de uma reconfiguração estrutural da governança digital no Brasil. Ao conferir às plataformas o encargo de fiscalizar conteúdos, sem prévia ordem judicial, a Corte institui um sistema de censura privada, sem garantias adequadas de legalidade, transparência e contraditório. A consequência é a erosão dos fundamentos do Estado de Direito no ambiente digital e o enfraquecimento do processo democrático. O reequilíbrio institucional recomenda a restauração da primazia do Parlamento na definição de políticas públicas digitais e a autolimitação do Judiciário ao seu papel de intérprete, e não de fonte primária, do direito.