Carlos Ayres Britto
Um dos muitos sentidos do
substantivo “constituição” é este: modo peculiar de ser das coisas. Modo único
de ser de tudo o que existe, pois o fato é que nada é igual a nada. Tudo é
absolutamente insimilar, aqui, neste planeta, e alhures. Daí que, já em sentido
jurídico e grafada com a inicial maiúscula, Constituição signifique o modo
juridicamente peculiar de ser de um povo soberano. Modo juridicamente
estruturante de ser, entenda-se. Isso por veicular, ela, a Constituição, as
linhas de montagem tanto do Estado quanto da sociedade, no âmbito territorial
em que tal povo exerce a sua soberania.
Outro dado a considerar: essa
espécie de Constituição (a originária) é habitualmente designada por sinônimos.
Ora é chamada de Lei das Leis, ora de Lex Maxima, ora de Magna Carta, ora de
Código Político. Explico. Lei das Leis, por ser a única lei que o Estado não
faz e, no entanto, se faz de todas as leis que o Estado faz. Lex Maxima, pela
sua hierarquia superior às demais leis do Estado, aqui inseridas as próprias
emendas a ela, Constituição. Magna Carta ou mesmo Lei Fundamental, por
consubstanciar os princípios e regras que fundamentam ou cimentam ou
elementarizam a personalidade humana. Finalmente, Código Político, pela
referida característica de estruturar com inicialidade o Estado e a própria
sociedade. Perceptível que estruturar com inicialidade o Estado é fazê-lo com
todos os órgãos elementares dele. Tanto o bloco daqueles órgãos concebidos para
governar (Poder Legislativo e Poder Executivo) quanto o bloco daqueles que não
governam, mas impedem o desgoverno (Polícia Judiciária, Ministério Público,
Tribunais de Contas e Poder Judiciário, em especial).
Um outro sinônimo, todavia, ouso
propor como dotado de préstimo instrumental para o melhor entendimento da
Constituição. É a locução “Carta Mãe”. Isso porque toda Constituição originária
é matriz de um Estado e de um Ordenamento Jurídico, ambos novinhos em folha.
Mãe que jamais nasce sozinha, entretanto. O seu partejamento se faz acompanhar
do partejamento da Ordem Jurídica em sentido objetivo e do Estado em sentido
subjetivo. É como dizer: a Constituição parteja a si mesma e dá à luz,
simultaneamente, Ordem Jurídica de um povo soberano. Dois nascimentos a um só
tempo. Como sucede com toda mulher que se faz mãe pela primeira vez. Mulher que
traz à vida cá de fora o seu bebê e ainda nasce enquanto mãe mesma. E nasce
enquanto mãe mesma porque até então o que havia era tão somente a figura da
mulher. Não propriamente a figura da mãe. Dando-se que a Ordem Jurídica é o
rebento objetivo da Constituição, tanto quanto o Estado é esse mesmo rebento,
mas numa acepção subjetiva.
Sucede, porém, que a Constituição
é um tipo de mãe que jamais emancipa de todo o seu rebento. Este lhe deve
obediência o tempo todo. Seja enquanto Ordem Jurídica, seja enquanto Estado.
Noutros termos, a Constituição é mãe que nasce para conviver por cima, o tempo
inteiro, com o seu filho. Compondo com ele um só Sistema de Direito Positivo
ou, simplesmente, Sistema Jurídico. É o que se chama de princípio da supremacia
da Constituição, para cuja irrestrita obediência ela concebe e monta um Sistema
de Justiça, principalmente. Um Sistema de Justiça que, em dimensão federal,
incorpora a Advocacia-Geral da União, os advogados privados, a Defensoria
Pública e o Ministério Público da mesma União, tudo afunilando para o Poder
Judiciário e, no âmbito deste, para o Supremo Tribunal Federal (STF). A Lei
Suprema a ser definitivamente guardada por um Tribunal Supremo como penhor de
segurança jurídica máxima.
É agora que vem o necessário link
normativo: o Sistema de Justiça brasileiro não tem “fagocitado” (Wellington
Lima e Silva) ou por qualquer forma traído o Sistema Jurídico igualmente
brasileiro. Não tem resvalado para esse pântano da mais ignominiosa teratologia
funcional e jamais poderia fazê-lo, pois sua legitimidade provém do sistema que
o antecede. Uma coisa a se seguir a outra, necessariamente, numa típica relação
de causa e efeito. O Sistema Jurídico enquanto causa, o Sistema de Justiça
enquanto efeito. Mas um Sistema Jurídico de que faz parte a Constituição mesma,
torno a dizer, na singularíssima posição de fonte, ímã e bússola do Direito
Positivo que a ela se segue ou que nela se fundamenta.
Concluo. Tenho o domínio dessas
elementares noções como imperioso para o entendimento do juízo de que os passos
da chamada Operação Lava Jato não têm no Sistema de Justiça brasileiro um
súbito e intransponível muro. Ao contrário, tal Sistema de Justiça operou como
sua chave de ignição e, depois, passou a operar como segura ponte para decisões
que devem ser tão objetivas quanto não partidárias. Não seletivas em face de
ninguém nem de partidos ou blocos políticos, porque assim é que determina o
Sistema Jurídico igualmente brasileiro. Sistema tão jurídico quanto serviente
do princípio republicano de que “todos são iguais perante a lei”, nos termos da
parte inicial da cabeça do art. 5.º da Constituição. Por isso que a regular
continuidade dela, Operação Lava Jato, ganhou vida própria. Tornou-se um
imperativo natural. Emancipou-se de quem quer que seja e se vacinou contra
qualquer tentativa de obstrução ou estrangulamento. Venha de quem vier,
individual ou coletivamente. Tudo porque essa regular continuidade ganhou
status de depurado senso de justiça material do povo brasileiro. Questão de
honra nacional. Símbolo de uma luminosa era que, deitando raízes no julgamento
da Ação Penal 470 (prosaicamente conhecida por “mensalão”), acena com a
perspectiva do definitivo triunfo da toga sobre o colarinho branco dos mais
renitentes e enquadrilhados bandidos. Afinal, como oracularmente sentenciou
Einstein, “quando a mente humana se abre para uma nova ideia, impossível
retornar ao seu tamanho primitivo”.
Carlos Ayres Britto é ex-presidente do STF
* O Estado de S. Paulo